“A pandemia vai ser um catalisador brutal de inovação no atendimento médico”, diz Arthur Igreja

Publicado em: 21/05/2020

“A pandemia vai ser um catalisador brutal de inovação no atendimento médico”, diz Arthur Igreja

Em uma conversa sem rodeios, falei com o futurista e professor da FGV sobre as dificuldades da transformação da Saúde, e como boa parte delas vêm da resistência dos tomadores de decisão

Por Rodrigo Guerra*

A transformação da Saúde por meio da inovação depende mais da disposição em romper com sistemas ultrapassados do que de grandes investimentos. E essa é uma mudança determinante em meio a uma gestão de crise das proporções que enfrentamos agora, com a Covid-19. Esses foram alguns dos assuntos que permearam minha conversa via teleconferência com o futurista Arthur Igreja, palestrante, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), especialista em tecnologia e inovação e autor do livro “Conveniência é o Nome do Negócio”. 

A carreira de Igreja e suas análises do comportamento do consumidor fizeram com que ele se tornasse um dos futuristas mais respeitados do Brasil – e meu convidado para este segundo artigo da série “Conversa de Inovação”. Nosso bate-papo durou quase uma hora numa tarde de sexta-feira, e as discussões foram tão longe que poderíamos ter estendido essa conversa por horas. 

Compartilho com vocês os melhores momentos:

Rodrigo Guerra: A matéria de seu trabalho é o estudo da inovação. Como você entende, em termos práticos, a inovação na Saúde?

Arthur Igreja: Sempre digo que inovação não é sinônimo de ideia nova. Toda essa crise que estamos vivendo, por exemplo, está expondo as diferenças do nosso sistema de Saúde. Existem as pessoas com um bom plano de Saúde, que contam com um médico conhecido e têm para onde correr, mas parte maciça da população experimenta um acesso muito precário. A tecnologia que poderia favorecê-las já existe, mas não chega até elas. A desconexão da informação chama muito a atenção, e digo isso como usuário: falta integração, não se acessa rapidamente a base de dados. Parece que toda consulta médica começa do zero, porque nosso histórico não pertence ao sistema de Saúde, e sim ao médico. Inovar, nesse caso e em outros, tem a ver com a disponibilização dos processos que já existem. Tudo que está acontecendo nessa pandemia vai ser um catalisador brutal da inovação no atendimento médico. A telemedicina, por exemplo, já era possível, mas foi aprovada em larga escala  [no  Brasil] só agora, em caráter emergencial. Só que ela vai ter que continuar mesmo depois que acabar o período do isolamento social. E até o atendimento presencial vai ter que mudar, serão necessárias novas formas. Então, existe muito espaço para a inovação na Saúde.

Rodrigo: É que a Saúde é um setor muito conservador. Existe uma resistência grande quanto a mudanças tecnológicas, principalmente por causa dos custos. Seja como for, o momento arrebentou uma porta, e não acho que vá ser fechada novamente. Como você vê a questão?

Na abertura do meu livro, faço questão de apontar que inovação não é complicada, tampouco demanda grandes investimentos. Na Saúde, você só precisa investir muito  quando saturou o que tinha para ser usado antes, e essa não é a realidade da maior parte dos lugares. Veja o exemplo da telemedicina: se estamos fazendo essa teleconferência de forma rápida e tranquila numa tarde de sexta-feira, me parece que não temos uma grande dificuldade tecnológica O que existe como impedimento para a tecnologia e outras ferramentas é a mentalidade. A dificuldade de inovar está mais relacionada com a curva de adoção, com a tomada de decisão, do que com falta de investimento. O que as pessoas colocam como motivo nas fichas de cancelamento da academias e programas de treinamento? A maioria diz que está parando por falta de tempo, mas sabemos que não é verdade. Foi escolha: alguma outra atividade ocupou aquele tempo. Vale o mesmo raciocínio para a falta de investimento. Na maioria das vezes não é o motivo real, é só a desculpa mais frequente.

Rodrigo: O setor é estruturado de uma forma muito corporativista. Você tem que comprar grandes brigas para desbravar situações que já estão bem consolidadas. A tecnologia para a teleconsulta está pronta há pelo menos cinco anos, temos regiões onde não há qualquer tipo assistência, porém, é proibido por lei fazer uma consulta por videoconferência. É um bloqueio criado pelo próprio setor, mas acredito que a opinião pública e a necessidade das pessoas vai falar mais alto a partir de agora, certo?

Arhur: Sem dúvida. A pessoa que precisa levar o resultado de um exame não tem a necessidade de passar tanto tempo em uma fila, ter que se ausentar ao trabalho, perder tempo se deslocando. O medo ao tratar desses temas é porque você acaba desbloqueando a atuação geográfica. Todo médico ou instituição de Saúde tem uma reserva de mercado regional, pois atende uma população local que é cativa, já que todo mundo vai precisar de atendimento médico em algum momento. E como existe uma escassez de oferta em relação à demanda, torna-se um mercado espetacular. Com a telemedicina, haveria uma concentração de profissionais, uma digitalização do atendimento. Assim, os médicos atenderiam em um formato muito mais parecido com um call center do que com o de um hospital, em uma dinâmica semelhante ao mundo de serviços de TI orientados por software. Porém, essa visão de que um grupo econômico pode criar essa central de consultas com uma atuação sem limites geográficos assusta muita gente. Mas se tem umas coisa que as crises sempre trazem são novos comportamentos, e a consequente ruptura com os anteriores. A última grande onda de inovação foi justamente por causa da crise de 2008. Até então, ninguém cogitava andar no carro de outra pessoa, dormir na casa de um desconhecido.  As crises fazem as pessoas questionarem as crenças estabelecidas.

Rodrigo: Além da teleconsulta, que outras tecnologias já disponíveis estão sendo subaproveitadas?

Arthur: Há muita oportunidades, mas antes precisamos lembrar que, na Saúde brasileira, o terreno não é nivelado. Temos hospitais que usam o estado da arte da tecnologia, mas são exceções. Quando falamos do país todo, o que importa é a média e a mediana. Nós temos o esforço gigantesco de trazer instituições que não estão em 2020, mas presas ao passado. No livro dou o exemplo de uma consulta que fui fazer no começo de 2019 e simplesmente não consegui pagar. Não havia máquina de cartão, não aceitava transferência bancária, tinha que ser dinheiro em espécie. Em muitos momentos, estamos falando de futurismo quando temos que falar em recuperar o passado. Pode ser atendimento de ponta em cardiologia – como era o caso dessa clínica – mas, como empresa, é absolutamente precária. Preenchi meu cadastro três vezes, um formulário gigante em papel, porque o cadastramento era por exame, e não por paciente. Falta caminhar na visão que chamamos de consumer centric [ou customer centric, como é mais comum], uma jornada do consumidor centrada no paciente. Porque hoje em dia o atendimento médico é cheio de silos, todo compartimentalizado, não existe a integração que a digitalização já pode proporcionar.

Rodrigo: Em muitos setores, a possibilidade de construir conteúdo colaborativo aumenta o acesso ao conhecimento. Na Saúde, porém, o ambiente digital ainda é terreno fértil para fake news e desinformação. Como as instituições de Saúde podem mudar esse cenário? Ou esse é um papel que cabe também a desenvolvedores, instituições de ensino e outros agentes?

Arthur: É primordial, uma condição sine qua non para excelência e inovação. Pilar básico mesmo. Tem tanta gente falando sobre inteligência artificial, big data, mas se você não tem informação de qualidade, boas bases de dados, você não faz nada! 

Rodrigo: Isso vale também para o “dr. Google”, que é esse hábito das pessoas de procurar os sintomas na internet, fazer um autodiagnóstico e depois ir ao médico para ter a confirmação do que elas já acreditam ter. Às vezes, a pessoa fica com a cabeça tão fechada que vai a dois, três médicos, até ouvir o que ela quer. E isso acaba tendo um impacto no custo da Saúde, não é mesmo?

Arthur: No ambiente online, existe uma construção de narrativas falaciosas.Veja, antes quando a informação vinha por jornais, revistas, diversos meios impressos, a responsabilidade pela veracidade da informação era do jornalista. Agora, com todo mundo produzindo informação, que está amplamente disponível, o filtro se torna responsabilidade do leitor, não do produtor de conteúdo. A internet virou um faroeste, no qual ninguém assume a responsabilidade pelo conteúdo que está produzindo. É um cenário muito complicado. Isso também levou ao superconsumidor: antes você procurava o vendedor da concessionária para se informar sobre um carro. Hoje não, você entra na loja com a decisão feita na cabeça. E essa mentalidade se estendeu para a saúde, ou seja, é uma relação que se degradou. 

Rodrigo: Outra questão que temos que levar em conta é que há uma, digamos, “desigualdade digital” muito grande. E não vamos nem falar de pessoas que não têm acesso à internet ou não possuem computador em casa. Há pessoas escolarizadas, economicamente ativas e com acesso a dispositivos, mas que não vão muito além do uso básico do WhatsApp ou de um editor de texto. Qual o impacto disso?

Arthur: É um ponto bastante interessante. Chamo atenção para o fato de que 48 milhões de brasileiros nunca usaram a internet. O Estado de São Paulo tem 45 milhões de habitantes, então pense que esse número é toda a população de São Paulo mais o Distrito Federal! Esse é o tamanho da população que nunca usou um único serviço digital. Estamos vendo isso com o auxílio emergencial, com os baixíssimos números do ensino à distância. Existe o tempo da tecnologia e o tempo das pessoas, e as coisas não são tão velozes como gostaríamos que fossem. Isso não está relacionado com a idade, e sim com o fato de a pessoa entender que faz parte do jogo. Entretanto, a maior parte delas acaba moldando o ambiente para si mesmas. Quando você fala de uma realidade conservadora, é exatamente disso que estamos falando: de decisores que têm uma barreira de uso e não vão provocar o desconforto, não vão querer aprender. É uma atitude tomada de forma egoísta: a pessoa está interessada apenas no bem-estar da rotina dela.

*Rodrigo Guerra é especialista em finanças e inovação em Saúde. Atua como superintendente executivo da Central Nacional Unimed, organização responsável por administrar todos os contratos de abrangência nacional do Sistema Unimed.

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