A Saúde que paga por doença – e por que precisamos inverter essa lógica

Publicado em: 04/06/2020

A Saúde que paga por doença – e por que precisamos inverter essa lógica

Pandemia impulsiona transformações no setor, mas enquanto pagamento por desempenho for apenas experimental no Brasil, pouco evoluímos para migrar o sistema da doença para a saúde

Por Rodrigo Guerra*

O debate sobre modelos de remuneração na Saúde tem pelo menos 20 anos no Brasil. Embora iniciativas que privilegiam a qualidade em detrimento da quantidade tenham pipocado por aí nessas duas décadas, enquanto o pagamento por desempenho for considerado apenas experimental, pouco vamos evoluir para melhorar a vida da população brasileira – algo que ficou ainda mais evidente diante da pandemia do coronavírus.  

Para entender por que não podemos mais adiar essa mudança, precisamos, primeiro, compreender o que significa ser eficiente quando se fala em serviços de Saúde. E as respostas podem ser muitas. Para alguns, a eficiência está na velocidade do socorro – que pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Para outros, está em assistir, mesmo que apressadamente, um número grande de pacientes. Há quem acredite que a quantidade de procedimentos é que traduz o sucesso de uma instituição de Saúde. Se no âmbito pessoal cada um pode ter a opinião que quiser, na gestão de Saúde a pergunta é bem menos subjetiva. A eficiência precisa ser mensurável, com indicadores claros que se refletem na melhoria de qualidade de vida do paciente e nas finanças da instituição.

Até o momento, a maior parte dos serviços de Saúde Suplementar considera eficiente o ato de fazer “mais com menos”, ou seja, ter uma relação entre preço e custo que proporcione um ganho significativo. Isso se traduz em dois modelos de remuneração hegemônicos: o pagamento por procedimento (fee for service) e o de diária hospitalar (per diem). Esses modelos trabalham com uma visão reativa e quantitativa da Saúde. Quanto mais procedimentos realizados, mais pagamentos; quanto maior a permanência do paciente no hospital, maior o faturamento. 

Mas e quando estamos diante de uma pandemia, em que cada recurso conta para salvar vidas? É possível focar na quantidade de gazes utilizadas em um procedimento? Ou precisamos pensar em formas de devolver a qualidade de vida para esses pacientes? A resposta é óbvia. E, conceitualmente, a maior parte dos agentes da Saúde concorda que a forma atual não é benéfica para ninguém – muito menos para o paciente, o principal interessado dessa equação.

Então você pode estar se perguntando: por que o modelo de remuneração na Saúde não muda? E eu respondo: essa atitude implica em redesenhar significativamente a cadeia produtiva e o próprio conceito de saúde como um todo, o que acaba revestindo o tema de polêmica e o coloca em um território delicado, no qual são tomadas poucas ações concretas para a mudança.

Iniciativas isoladas, por mais bem intencionadas que sejam, apresentam pouco efeito. A lógica que sustenta esses modelos tem de ser quebrada, mas há uma estrutura viciada já construída. Laboratórios, fornecedores de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), fabricantes de equipamentos e suprimentos, hospitais, operadoras – todos os agentes precisam redefinir sua forma de atuação para que essa mudança seja possível. 

E é preciso dizer que se setor tivesse mudado a lógica tempos atrás, hoje, em meio à pandemia do coronavírus, não estaríamos na situação na qual nos encontramos, com muitos gestores com dificuldade para equilibrar as finanças em Saúde diante da diminuição de procedimentos eletivos.

Mudança para já

O primeiro passo para transformar os modelos de remuneração na Saúde passa pela aceitação de que é preciso investir na disseminação dos conceitos e práticas de atenção integral. Mais do que uma proposta “preventiva”, o modelo privilegia o tempo que o paciente fica fora do hospital. Promove, assim, a qualidade de vida, diminuindo a necessidade de procedimentos médicos e exames laboratoriais complexos e caros. E abre espaço para o modelo de pay for performance, ou remuneração por desempenho. Nele, elimina-se a variável quantitativa, dando protagonismo à qualidade.

Essa qualidade, por sua vez, passa por uma gestão de pessoas bastante criteriosa, na qual qualificação e  treinamento são um dos principais focos de investimento. A pandemia nos levou a rever nossas percepções de valor sobre o sistema de Saúde. E essa nova visão possivelmente será aprofundada por todas as partes no futuro próximo. As pessoas e as organizações terão em conta a maneira como cada agente se comportou na crise. 

O aspecto da formação dos profissionais da linha de frente é tão importante para esse modelo que cabe, também, discutir como a Saúde Suplementar pode favorecer o aprimoramento dessa formação. Se você coloca os incentivos no lugar errado, colhe os frutos errados. Por premiar quantidade, o modelo atual não promove qualificação. Ao contrário: quando não se é criterioso, o modelo fee for service gera mais lucro quando há um atendimento excessivo, mas não necessariamente assertivo. Mas quando a variável qualitativa orienta o caminho, o bom hospital não é o que tem internações mais prolongadas, e sim o que tem menores índices de reinternação. 

Esse modelo qualitativo é praticado, com diferentes particularidades, no Canadá, em Portugal e na Holanda. São países onde há investimento constante na qualidade dos serviços, o que inclui o amplo uso dos recursos tecnológicos, de prontuários digitais ao uso de soluções de inteligência artificial. Não são sistemas irrepreensíveis, obviamente, mas todos trazem aprendizados que nos ajudariam bastante no redesenho dos nossos processos.

O modelo pay for performance, inclusive, não é a única alternativa de remuneração por valor. Há outros, como captação, orçamentação, assalariamento. É possível discutir essas opções, o que não deve ser prolongada é a manutenção da perspectiva consumerista da saúde, na qual a “qualidade” de uma operadora é medida pela espessura do livro de credenciados. 

Nos últimos anos, testemunhamos o quanto o nível de responsabilidades socioambientais das empresas começou a pautar a percepção do público e influenciar o consumo. Já passou da hora de o setor de Saúde assumir uma atitude semelhante.

*Rodrigo Guerra é especialista em finanças e inovação em Saúde. Atua como superintendente executivo da Central Nacional Unimed, organização responsável por administrar todos os contratos de abrangência nacional do Sistema Unimed.

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