Além do coronavírus: a pandemia silenciosa que mata mais que a Covid-19

Publicado em: 18/06/2020

Além do coronavírus: a pandemia silenciosa que mata mais que a Covid-19

Saúde mental é tema soterrado sob tabus e práticas equivocadas, onerando o sistema e trazendo pouco benefício aos indivíduos, que não recebem a atenção integral que necessitam para garantir seu bem-estar e qualidade de vida

Por Rodrigo Guerra*

A medicina evoluiu em inúmeros aspectos nos últimos anos. Somos capazes de detectar precocemente diversos tipos de câncer, transplantes salvam vidas todos os dias, e até mesmo a inteligência artificial como apoio ao diagnóstico já é uma realidade. Ao mesmo tempo, depressão, ansiedade e outros transtornos de saúde mental seguem se alastrando como o mal do século. Diante de uma pandemia que tem como premissa o isolamento social, o consequentemente afastamento ocasionado por ele e, ainda, uma crise econômica como efeito colateral, quadros já estabelecidos podem se agravar ainda mais, e outros tendem a surgir. É urgente deixar tabus e práticas equivocadas de lado e colocar o tema como uma das pautas da transformação da Saúde.

Dimensionar o problema é o primeiro passo para propor mudanças na forma como ele é tratado. Somente a depressão afeta 264 milhões de pessoas no mundo, segundo estudo organizado pela revista científica The Lancet. E desse montante, entre 76% e 85% dos indivíduos não recebem tratamento adequado, seja por falta de condições ou por não terem informações.

Mas a depressão não é a única doença com a qual temos de nos preocupar. Uma a cada quatro pessoas desenvolve alguma forma de transtorno mental, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ou seja: cerca de 25% da população do planeta têm a saúde mental comprometida em algum nível.  E a mesma OMS aponta a depressão como principal causa de incapacidade para o trabalho em todo o mundo.

Como chegamos a esse quadro? São muitos os fatores, mas é possível dizer que todos estão ligados ao estilo de vida dos tempos modernos: mais rápido, mais agressivo, no qual somos inundados por informações. Do ponto de vista clínico, essa combinação é tóxica. Recomendo o livro “The shallows: what the internet is doing to our brains” (“A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”, em tradução livre), de Nicholas Carr, sem edição brasileira, para os que querem se aprofundar sobre o impacto que o excesso de informações proporcionado pela internet causa no sistema nervoso e na capacidade cognitiva humana.

Viver em um mundo com estímulos praticamente incessantes demandou uma adaptação comportamental, que tem como sequela essa triste variedade de transtornos, como ansiedade, estresse, esquizofrenia, além daqueles ligados à alimentação, personalidade ou movimentos. Fatores genéticos, nutricionais e ambientais também contribuem, claro. E todos eses elementos estão mais presentes que nunca durante a pandemia da Covid-19. O número de casos de depressão no Brasil aumentou 90% desde que o isolamento social começou, segundo um estudo feito em 23 Estados pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Mudança urgente

De forma geral, o  setor de Saúde negligencia o tratamento da saúde mental. Os modelos são baseados em ações mecânicas: procedimentos laboratoriais, cirurgias, prescrições de medicamentos. Uma mente saudável precisa de muito mais.  Além disso, não se tratam de patologias nas quais basta passar por um exame para confirmar o diagnóstico.

Os cuidados com a saúde mental são fundamentais para a Atenção Integral à Saúde (AIS) – um modelo que prioriza a qualidade de vida e o bem-estar dos indivíduos, e não somente o tratamento de doenças quando elas já se estabeleceram. E como escrevi no artigo “A Saúde que paga por doença – e por que precisamos inverter essa lógica”, a AIS é uma realidade para poucos, pois sua adoção implica em mexer nas estruturas de pagamento que criaram uma zona de conforto para boa parte da cadeia produtiva do setor. Porém, não é preciso um exame profundo para perceber o quanto esse modelo ultrapassado é, além de ineficaz ao tratamento, oneroso às instituições – já que pessoas doentes demandam mais do sistema como um todo.

O que vemos hoje são indivíduos que marcam consultas para, basicamente, buscar receitas. É um cenário especialmente conveniente para a indústria farmacêutica, que oferece medicamentos caros ao consumidor final, com margens de lucro superiores a 40%. Enquanto isso, a adoção de práticas de AIS, terapias integrativas e mesmo uma visão mais humanizada do paciente ficam restritas a um universo bastante reduzido de instituições de Saúde.

Ampliar o alcance das boas práticas é nossa responsabilidade. Precisamos favorecer e realizar iniciativas que quebrem o modelo atual, utilizando, inclusive, a tecnologia  e a inovação em Saúde como meios. Temos que trazer conscientização para a abordagem dessas questões, assumir a tarefa de quebrar os muitos tabus existentes. Por exemplo: cerca de 800 mil pessoas cometem suicídios anualmente, e a depressão é a principal causa, segundo a OMS. Mesmo assim, esse é um assunto tratado em “voz baixa”, e ainda tomado de preconceitos. 

Aliás, os preconceitos são muitos no universo da saúde mental. Enquanto forem mantidos, as pessoas não vão encontrar um ambiente de conforto para lidar com a situação. É necessário enfatizar que depressão, ansiedade e outros transtornos não são “fase”, “frescura” ou “doença de rico”.  Por isso, é importante divulgar estatísticas claramente, e pessoas públicas devem falar sobre o tema.  Essas iniciativas levam a discussão para dentro das famílias, ajudam a trazer uma mudança de mentalidade e podem combater o preconceito.

Há ainda outros aspectos que merecem uma discussão aprofundada, como os tabus que envolvem a internação psiquiátrica ou mesmo o abuso de álcool, lamentavelmente tolerado em nossa sociedade, e que também está relacionado ao universo da saúde mental. Mas antes precisamos rever a base disso tudo. 

Precisamos falar sobre saúde mental – sem medos e sem rodeios. Ou corremos o risco de seguir tratando doenças sem, no entanto, proporcionar qualidade de vida e bem-estar para as pessoas.

*Rodrigo Guerra é especialista em finanças e inovação em Saúde. Atua como superintendente executivo da Central Nacional Unimed, organização responsável por administrar todos os contratos de abrangência nacional do Sistema Unimed.

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