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Publicado em: 27/06/2020
Covid-19 põe as cartas na mesa e exige revisão do sistema e investimentos em saúde
Combate ao coronavírus prossegue no Brasil, mas gestores devem reconhecer que a transformação da Saúde já começou e é hora de repensar o destino que o dinheiro receberá de agora em diante
Por Rodrigo Guerra
A pandemia da Covid-19 se tornou uma lupa sobre o modus operandi do sistema de Saúde brasileiro. A maneira como enfrentamos o vírus e suas consequências deixou evidentes gargalos e limitações antigas, mas também colocou luz sobre pontos fortes e oportunidades. E a principal delas diz respeito à transformação da Saúde. Se estamos, de fato, dispostos a realizá-la, devemos pensar desde já nos investimentos fundamentais para o pós-pandemia.
Aos que julgam essa reflexão precipitada, enfatizo que o momento de reação e adaptação já passou. Os últimos dois meses, ainda que bastante atribulados e preocupantes, foram tempo mais que suficiente para reestruturar operações e colocar as unidades de Saúde em condições de atender os pacientes. E ainda que a calmaria não esteja em um horizonte próximo, não dá para deixar de lado a tarefa de pensar em como serão estruturadas as instituições de agora em diante.
A primeira abordagem é, ao mesmo tempo, filosófica e prática: o conceito de eficiência na Saúde vai mudar. Até pouco tempo atrás, eficiente era o hospital ou clínica que fazia mais com menos – o que pautava a administração era basicamente uma relação direta entre preços e custos. Agora entram outros elementos, muitos deles inéditos. O mais importante deles é a capacidade do setor em reagir prontamente a eventos inusitados. Epidemias e pandemias passam, definitivamente, a estar no radar de todas as empresas, de qualquer ramo, e na Saúde passam a ser prioridade.
Toda instituição de Saúde, seja ela privada ou pública, deverá traçar cenários de crise em seu planejamento, precisará entender o peso da capacidade de resposta imediata e oferecer segurança aos pacientes e às suas equipes de uma maneira muito mais profunda que antes. Constatamos, da forma mais dramática possível, quão alto é o custo do despreparo, seja em termos financeiros ou humanos, e não podemos deixar que isso se repita.
Uma segunda abordagem do planejamento pós-pandemia é a revisão da remuneração dos profissionais, que não se limita aos médicos, mas abrange todos os agentes da Saúde, em especial enfermeiros e técnicos de enfermagem. Que eles recebam aplausos e menções públicas é meritório e louvável, mas esses profissionais dependem de formas de reconhecimento mais palpáveis e de uma valorização à altura do risco e da fidelidade que vivenciam no cumprimento de suas funções.
Com essas abordagens em mente, podemos considerar três frentes de investimento fundamentais no pós-pandemia:
- Estruturação e capacidade instalada;
- Reorganização da cadeia de insumos, quebrando a superdependência das importações;
- Conscientização do público, de forma aplicada, sobre a atenção integral à saúde.
Todos esses investimentos necessitam, claro, de recursos. Para garanti-los, o caminho mais imediato é combater o desperdício por meio de uma gestão mais racional. Já a longo prazo, devemos disseminar a atenção integral à saúde, o que constitui toda uma mudança cultural não só dos agentes do sistema, mas também da sociedade. Hoje ainda nos encontramos presos a uma “medicalização” excessiva, com usuários que entendem acesso à saúde de qualidade como disponibilidade de medicamentos – e organizações que se propõem a atender a esse anseio. Migrar para a mentalidade de que a qualidade existe quando não se adoece é um caminho sem volta não só para a sustentabilidade do setor no pós-pandemia, mas também para que a população brasileira tenha mais qualidade de vida.
Esse objetivo, por sua vez, passa por uma mudança na forma de remuneração da Saúde Suplementar, assunto que tratarei mais detalhadamente em outro artigo. Mas é preciso dizer que, enquanto insistirmos nesse modelo de remunerar por quantidade de atendimentos, e não por qualidade, favorecemos mais uma prática equivocada da medicina que um cuidado de referência.
Acredito que todos os players da Saúde estão agora mais sensíveis e propensos para enfrentamentos que eram há muito postergados. E é nosso papel, como gestores, estar à frente de todos os agentes, hospitais e operadoras de Saúde, para que esse calor da mudança não “esfrie” no retorno a uma aparente normalidade – que de normal promete não ter nada.
Em relação às instituições governamentais, acredito que o mundo deve caminhar para uma nova perspectiva sobre o papel do Estado na economia. O ideário neoliberal, pautado pela ideia de que o setor privado seria capaz de conduzir ao crescimento econômico, não resistiu a um vírus. O Estado passará a desempenhar outro papel, mais presente, e os cidadãos irão exigir um outro nível de investimentos em Saúde, similar ao disponibilizado hoje na área de defesa, por exemplo. Os bilhões que o mundo gasta em armamentos carregam a lógica de que são usados para combater inimigos potenciais. Agora os inimigos são outros, invisíveis, e pedem outro tipo de combate, deixando claro que se queremos construir um mundo diferente no pós-pandemia, precisamos começar pela saúde – essa com caixa baixa mesmo, que vai muito além de um setor.
*Rodrigo Guerra é especialista em finanças e inovação em Saúde. Atua como superintendente executivo da Central Nacional Unimed, organização responsável por administrar todos os contratos de abrangência nacional do Sistema Unimed.