“Planejar cirurgias pode trazer economia milionária à Saúde”, diz Giselle Coelho

Publicado em: 20/08/2020

“Planejar cirurgias pode trazer economia milionária à Saúde”, diz Giselle Coelho

Adotar simuladores ultrarrealistas, melhorar os critérios para avaliar procedimentos solicitados e incluir aspectos de gestão na formação dos médicos são pontos destacados por uma das principais neuropediatras do país

Por Rodrigo Guerra*

Planejar, treinar e se preparar minuciosamente para as cirurgias. Para Giselle Coelho, neurocirurgiã pediatra, esse conjunto de ações é indispensável para a inovação na Saúde. Essa crença se traduz em atitude: ela desenvolveu um simulador de cirurgias ultrarrealista que lhe valeu um prêmio da Federação Mundial das Sociedades de Neurocirurgia (WFNS, na sigla em inglês) em 2015. Vale ressaltar que ela foi a primeira mulher a receber tal prêmio na categoria “Jovem Cirurgião”.

Giselle é doutora em medicina e ocupa a posição de diretora científica do Instituto Educsim, dedicado a desenvolver simuladores de cirurgias de alta complexidade. Também faz parte do quadro de médicos do Hospital Santa Marcelina e do Hospital Infantil Sabará, ambos em São Paulo, na área de neuropediatria. É uma das profissionais de referência em sua especialidade.

Tive um encontro inspirador com ela para produzir mais este conteúdo da série “Conversa de Inovação”. Falamos sobre as possibilidades que o planejamento de cirurgias traz não só em melhoria de custo e eficiência, mas também para ampliação da efetividade, transparência e engajamento do paciente nos procedimentos. Proporcionar tais benefícios é nossa missão como gestores da Saúde, e a conversa com Giselle nos ajuda a resgatar isso.

Leia na íntegra:

Rodrigo Guerra: Em sua visão, quais as principais vantagens do modelo atual para decisão de procedimentos cirúrgicos na Saúde Suplementar? E quais os principais problemas?

Giselle Coelho: Ouço muitos colegas reclamando da demora para autorização dos procedimentos, mas entendo que a avaliação criteriosa é extremamente importante, até para evitar as indicações sem necessidade. Acredito, porém, que os critérios dessa avaliação poderiam melhorar. No caso da cirurgia neuropediátrica, por exemplo, muitos casos não são avaliados por especialistas, e é uma especialidade com particularidades que são muito difíceis de serem apreciadas por quem não é da área. É preciso otimizar essa avaliação, trazendo especialistas que tenham conhecimento profundo dos casos direcionados, e que sejam competentes em procedimentos de alta complexidade. O desafio é criar uma rede de médicos com esse know how  e que não tenham abandonado a pesquisa em sua rotina de trabalho.

Rodrigo: O que vejo é que a saúde suplementar cria estruturas para se proteger do próprio modelo. Se conseguíssemos ter uma relação diferente com os médicos, com remuneração por qualidade, com os incentivos no lugar certo, não precisaríamos de auditorias, certo?

Giselle: Esse é o ponto-chave. A recompensa pelo trabalho prestado se deve à indicação precisa, à atuação do médico. Essa é uma mudança que precisa acontecer. A pandemia mostrou isso, forçou todo o setor a parar para refletir sobre a diminuição das cirurgias eletivas.

Rodrigo: O bloco cirúrgico é rentável para a Saúde, mas também demanda um alto custo. Como chegar à resolutividade necessária sem que o dinheiro que ele traz escoe pelo ralo com a complexidade dos procedimentos?

Giselle: A solução pode estar na adoção de tecnologias de um planejamento pré-operatório efetivo. A gente começou a implantar isso no SUS. Acompanhei modelos adotados em outros países e procurei trazê-los de maneira adequada para cá. Quando a gente planeja uma cirurgia, prevê tudo: a utilização dos materiais adequados, as quantidades, as técnicas e a abordagem cirúrgica. Quando a complexidade do caso é estudada antecipadamente, reduz-se bruscamente o tempo do intraoperatório, chegando a diminuição de até 40% no tempo de cirurgias complexas. Chegamos a fazer cirurgias que durariam 12 horas em sete horas, reduzindo também uso de antibióticos, de transfusão sanguínea. O planejamento demanda tempo, pode durar três ou quatro horas, mas nesse tempo o doente não está anestesiado, o centro cirúrgico não é requisitado, a sala não está ocupada. E há impacto direto na performance da cirurgia. Imagina se a gente coloca esse modelo em larga escala na Saúde Suplementar: a economia seria de milhões. O tempo médio de UTI para certos tipos de cirurgia neuropediátrica é de 24 a 36 horas. Com o planejamento, esse tempo baixa para 12! E esses resultados são obtidos tanto no SUS quanto na Saúde suplementar. 

Rodrigo: No modelo atual, a decisão sobre os procedimentos adotados está sempre na ponta – isso é, nos médicos. Mas nem todos os médicos estão conscientes dos aspectos mais básicos da gestão hospitalar. Muitos não entendem a diferença financeira entre prescrever o medicamento em ampola e em comprimido, para ficar em um exemplo bem básico. Como essa habilidade pode ser exercitada e melhorada?

Giselle: Essa é uma parte muito falha em nossa formação. Eu acredito que a melhoria deve começar introduzindo esse aprendizado na graduação. Se você vê essas nuances no internato, começa a olhar suas atividades com outros olhos. E esse ensino tem que se estender para outros momentos da formação. Na residência, por exemplo, isso ganha outra complexidade, porque o residente, especialmente da área cirúrgica, não tem dimensão do impacto que a escolha do material vai ter. Ele não é ensinado a pensar nesses detalhes, a refletir e decidir a respeito. “Tenho um material de custo alto, mas se eu usá-lo, o paciente vai ter benefício mais para frente? É um material que diminui as chances de uma reoperação?” Reflexões desse tipo precisam fazer parte do dia a dia desse profissional.

Rodrigo: Você pesquisa bastante as inovações em simulação de neurocirurgia, um ramo no qual a transformação digital é vista com entusiasmo. Por que a comunidade médica em geral aceita com facilidade a inovação nos procedimentos, mas reluta em inovações de gestão?

Giselle: Eles são resistentes à tecnologia também, e toda essa relutância vem por um conjunto de fatores. É comum você ouvir professores falarem: “eu não preciso disso para operar”. Tudo que afeta a prática tem uma resistência inicial, porque vai exigir mudança, vai exigir aprendizado. A gente precisa mostrar mais os benefícios, e isso pode ser feito em publicações, em congressos. Quando você vai a um congresso internacional, muito do que é feito na Saúde Pública do Brasil é visto com excelentes olhos por estrangeiros. Já vi um professor indiano da minha área, um médico com mais de 400 casos operados, que queria levar tecnologia do Brasil para o país dele. Enquanto isso, essas mesmas técnicas podem encontrar muita resistência entre os médicos brasileiros. Para mudar a mentalidade, precisamos mostrar o quanto essas inovações têm potencial de impactar de forma positiva. Se isso influenciar na remuneração do médico, pode estar aí a chave para quebrar essa resistência.

Rodrigo: Raras vezes o paciente tem condições de compreender e avaliar a pertinência de um procedimento que lhe foi prescrito. Ele precisa estar melhor informado? A quem cabe o papel de fazer essa educação?

Giselle: O conhecimento do paciente e da família é fundamental, especialmente no pós-operatório. A gente tem uma diferença educacional em meio à população, e o médico precisa ter recursos para explicar da forma mais clara possível. No caso de uma cirurgia craniana, por exemplo, a família tende a pensar que, se fechou o crânio do paciente, está “tudo certo”, que não há mais risco. Mas se ela entende exatamente o que foi feito, vai ficar atenta e seguir as recomendações médicas. A ferramenta do modelo anatômico impresso em 3D facilitou muito esse tipo de comunicação. Com um modelo realista de qualquer estrutura do corpo é possível explicar detalhadamente e de maneira muito visual porque é preciso evitar certos movimentos, porque alguns cuidados precisam ser rigorosamente observados. E também melhora o entendimento dos profissionais que vão cuidar do paciente depois, seja na UTI ou no quarto. 

*Rodrigo Guerra é especialista em finanças e inovação em Saúde. Atua como superintendente executivo da Central Nacional Unimed, organização responsável por administrar todos os contratos de abrangência nacional do Sistema Unimed. 

Esta entrevista foi produzida com o apoio do jornalista Leonardo Vinhas.

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